Prescrição Tributária e Protesto Extrajudicial da CDA: A Batalha Legal Pela Extinção da Execução Fiscal

A Irretroatividade da Lei Tributária e a Prescrição: Uma Análise Crítica da Interrupção pelo Protesto Extrajudicial Antes da LC 208/24

A dinâmica temporal da aplicação das normas jurídicas sempre representou um intrincado desafio para a ciência do Direito, e no campo tributário, essa complexidade atinge contornos ainda mais sensíveis.

A presente análise fita-se a um ponto nodal dessa intersecção: a irretroatividade da lei tributária face à prescrição, especificamente quando a interrupção de tal prazo é arguida por um protesto extrajudicial lavrado antes da vigência da Lei Complementar nº 208/2024.

A questão impõe um debruce profundo sobre os princípios constitucionais tributários e a evolução da jurisprudência, notadamente no Superior Tribunal de Justiça.

O sistema tributário brasileiro, plasmado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), erige-se sobre pilares que visam a garantir a segurança jurídica, a previsibilidade e a proteção do contribuinte contra o arbítrio estatal. Um desses pilares é o princípio da irretroatividade da lei tributária, insculpido no Art. 150, inciso III, alínea ‘a’, da CF/88:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)

III – cobrar tributos:

a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;”

Este dispositivo constitucional veda que os entes federativos cobrem tributos em relação a fatos geradores (o evento que dá origem à obrigação tributária) que ocorreram antes do início da vigência da lei que os criou ou majorou. Sua ratio decidendi é clara: o contribuinte deve saber, no momento em que pratica um ato gerador de riqueza, quais são as consequências tributárias desse ato. A surpresa legislativa em detrimento do contribuinte é, portanto, proscrita pela Carta Magna.

Embora o comando constitucional se refira diretamente à instituição ou ao aumento de tributos em relação a fatos geradores pretéritos, o princípio subjacente é muito mais amplo, englobando a segurança jurídica e a proteção da legítima expectativa do contribuinte. Ele é um vetor hermenêutico que permeia toda a legislação tributária, especialmente em matéria de prazos extintivos como a prescrição e a decadência.

O Código Tributário Nacional (CTN), como lei complementar que estabelece as normas gerais de direito tributário (Art. 146, III, ‘b’, da CF/88), materializa esse princípio em seus Arts. 105 e 106:

“Art. 105. A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116.

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;

II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:

a) quando deixe de defini-lo como infração;

b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não implique em falta de pagamento de tributo;

c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei anterior.”

O Art. 105 do CTN reitera a regra da aplicação prospectiva da lei tributária, já o Art. 106 do CTN estabelece as exceções à irretroatividade, que são taxativas e visam, em última análise, a beneficiar o contribuinte.

A exceção das leis interpretativas (inciso I) exige que a norma não crie ou modifique direitos e obrigações, apenas esclareça o sentido de lei anterior e as demais exceções (inciso II) referem-se à retroatividade benigna em matéria de penalidades. Fora dessas hipóteses estritas, a lei tributária não pode retroagir para prejudicar o contribuinte.

A prescrição tributária fita-se como um instituto fundamental do Direito Tributário, que opera a extinção do crédito tributário em razão do decurso de um lapso temporal, por inércia da Fazenda Pública em exercer sua pretensão de cobrança judicial.

Consagrada no Art. 156, inciso V, do CTN, e detalhada no Art. 174 do CTN, a prescrição delimita o poder estatal de exigir o pagamento de tributos:

“Art. 156. Extinguem o crédito tributário:

(…)

V – a prescrição e a decadência;”

“Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.

Parágrafo único. A prescrição se interrompe:

I – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal; (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)

II – pelo protesto judicial;

III – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;

IV – por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.”

O prazo quinquenal (cinco anos) para a ação de cobrança inicia-se a partir da constituição definitiva do crédito tributário, que ocorre quando o lançamento torna-se irrecorrível na esfera administrativa, contudo, uma vez consumada a prescrição, o crédito tributário é extinto ipso jure, cessando o direito da Fazenda de cobrá-lo judicialmente.

A Lei Complementar nº 208, de 24 de abril de 2024 (LC 208/2024), promoveu uma relevante alteração no regime de interrupção da prescrição tributária.

Com vigência a partir de 03 de julho de 2024, a LC 208/2024 modificou o Art. 174, parágrafo único, do CTN, para incluir expressamente o protesto extrajudicial (antes previsto apenas no inciso II como “protesto judicial”) como causa interruptiva da prescrição.

Antes da LC 208/2024, a jurisprudência do STJ era uníssona em considerar o rol de causas interruptivas do Art. 174, parágrafo único, do CTN como numerus clausus, portanto, um protesto extrajudicial de dívida ativa, embora fosse um ato cartorário válido, não tinha o condão de interromper a prescrição tributária.

A novel legislação, ao conferir eficácia interruptiva ao protesto extrajudicial, visa a modernizar e aprimorar os mecanismos de cobrança da dívida ativa, possibilitando à Fazenda Pública um instrumento mais célere e menos oneroso do que a via judicial para reaver créditos.

A controvérsia central exsurge quando se tenta atribuir ao protesto extrajudicial, lavrado antes da vigência da LC 208/2024, o efeito interruptivo que a lei nova passou a prever.

A tentativa de atribuir eficácia interruptiva a tal protesto incorreria em flagrante retroatividade prejudicial da lei tributária, o que é constitucionalmente vedado e expressamente rechaçado pela jurisprudência consolidada do STJ.

Portanto, conferir um novo efeito a um ato pretérito, que à época de sua prática não possuía tal consequência, viola o Art. 105 do CTN e, fundamentalmente, o Art. 150, III, ‘a’, da CF/88.

Embora este último dispositivo se refira à instituição ou aumento de tributos, seu vetor axiológico é a proteção da segurança jurídica e da previsibilidade para o contribuinte.

Estender retroativamente o prazo de cobrança de uma dívida, dando eficácia a um ato que antes era ineficaz para tal fim, implica, em última análise, em uma forma de “agravamento” da situação do contribuinte, violando a confiança no ordenamento jurídico.

A questão da aplicação no tempo de leis que alteram as causas de interrupção da prescrição tributária não é nova.

O STJ enfrentou-a com maestria e profundidade no debate acerca da Lei Complementar nº 118/2005.

Essa LC também promoveu alteração crucial no Art. 174, parágrafo único, inciso I, do CTN, modificando o marco interruptivo da prescrição de “citação pessoal” para “despacho do juiz que ordenar a citação”, e, mais do que isso, a LC 118/05 (Art. 176) expressamente previu sua aplicação retroativa a execuções em curso.

Ainda assim, o STJ, em uma série de julgados que culminaram em precedentes vinculantes (recursos repetitivos), limitou a retroatividade da LC 118/05, pautando-se na segurança jurídica e na irretroatividade prejudicial.

Os paradigmas dessa consolidação são o REsp nº 999.901/RS e o REsp nº 1.120.295/SP (Tema Repetitivo nº 166), ambos de relatoria do Ministro Luiz Fux, julgados em 13/05/2009.

No julgamento do REsp nº 999.901/RS, o STJ analisou a retroatividade do Art. 174 do CTN com a nova redação da LC 118/05. Embora a LC 118/05 tivesse pretendido a retroatividade, o STJ firmou a tese de que a nova regra (interrupção pelo despacho que ordena a citação) somente se aplicaria às execuções fiscais ajuizadas após a entrada em vigor da LC 118/05 (09/06/2005).

A ratio decidendi foi a proteção do contribuinte contra a aplicação retroativa de uma norma que poderia prejudicá-lo, alterando a contagem do prazo prescricional para atos já praticados sob a égide da lei anterior.

O STJ reconheceu que, embora a lei fosse processual, ela tinha forte impacto no direito material, não podendo surpreender o jurisdicionado com regras que não existiam à época de sua conduta.

No REsp nº 1.120.295/SP (Tema Repetitivo nº 166), o STJ complementou e reafirmou essa tese, consolidando que a interrupção da prescrição, nos termos do Art. 174, parágrafo único, I, do CTN (com a redação dada pela LC 118/05), retroage à data do ajuizamento da execução fiscal, mas apenas para as execuções fiscais ajuizadas a partir de 09/06/2005.

A conclusão que se extrai por analogia, mutatis mutandis, desses precedentes do STJ é clara e indissociável da análise da LC 208/2024: se a lei nova (LC 208/2024) atribui um efeito interruptivo a um ato (o protesto extrajudicial) que a lei anterior não previa, esse efeito somente pode ser reconhecido para os atos praticados a partir da vigência da lei nova (03/07/2024).

Logo, a aplicação retroativa para protestos lavrados antes dessa data seria um bis in idem hermenêutico, já rechaçado pelo STJ e em contrariedade aos princípios constitucionais.

A análise detida do tema revela que a Fazenda Nacional não pode, sob o pálio de uma nova lei (LC 208/2024), dar efeito retroativo a um ato (protesto extrajudicial) que, à época de sua prática, não possuía a aptidão legal de interromper a prescrição tributária.

Tal conduta colidiria com a clareza da legislação infraconstitucional e, mais gravemente, com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da irretroatividade da lei tributária prejudicial.

A jurisprudência consolidada do STJ, ao interpretar a LC 118/2005, já traçou o limite para a aplicação no tempo de normas que alteram os marcos prescricionais, reafirmando que a lei nova se aplica prospectivamente, sem surpreender o contribuinte com a “revivescência” de prazos por atos ineficazes no passado.

O respeito a esses precedentes e princípios é imperativo para a manutenção da previsibilidade e da confiança que devem pautar a relação Fisco-contribuinte.

O Poder Judiciário, em sua função de salvaguardar direitos e garantias fundamentais (Art. 5º, XXXV, CF/88), deve atuar para coibir qualquer tentativa de mitigar a segurança jurídica em detrimento do administrado.