Com a máxima vênia, a edição do Decreto nº 12.467, de 23 de maio de 2025, representa não apenas mais um capítulo na crônica de abusos fiscais perpetrados contra o contribuinte brasileiro, mas sim um sintoma agudo de uma patologia institucional mais profunda: a subversão consciente dos princípios basilares da tributação para satisfazer a um insaciável apetite arrecadatório.
O referido ato normativo, que majorou as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sob a égide de uma delegação legislativa, constitui, na sua essência, uma fraude à Constituição, um artifício que corrói a separação de poderes e esvazia o propósito e a finalidade para o qual os tributos extrafiscais foram concebidos.
A arquitetura da Constituição da República de 1988, em seu art. 153, conferiu à União a competência para instituir o IOF e, em um lance de pragmatismo econômico, seu § 1º excepcionou-o, juntamente com o II, o IE e o IPI, do postulado da anterioridade, facultando ao Poder Executivo a alteração de suas alíquotas.
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
I – importação de produtos estrangeiros;
II – exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;
III – renda e proventos de qualquer natureza;
IV – produtos industrializados;
V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários;
[…]
§ 1º É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.
Esta permissão, contudo, não consubstancia um cheque em branco nem uma carta de corso para o Tesouro. A razão da lei desta exceção reside na natureza eminentemente regulatória destes tributos, que devem funcionar como instrumentos ágeis de política econômica para induzir ou desestimular comportamentos dos agentes de mercado, seja para o controle do crédito, a regulação do câmbio ou o fomento de setores produtivos.
Dentre os quatro “impostos-ferramenta”, o IOF, por sua capilaridade e incidência sobre o cerne do sistema financeiro, tornou-se o mais versátil e, por conseguinte, o mais suscetível a desvios finalísticos, transmutando-se de bisturi de política monetária em malho arrecadatório.
Ao analisar o corpo do Decreto 12.467/25, que alterou o já existente Decreto nº 6.306/2007, percebe-se uma gritante ausência de motivação.
O ato se limita a invocar, de maneira puramente formal e protocolar, a autorização contida na Lei nº 8.894/1994, sem, contudo, demonstrar o nexo causal entre uma suposta anomalia econômica e a medida fiscal adotada.
Esta omissão não é um mero lapso, mas a confissão tácita do desvio de finalidade, impondo-se, assim, questionar de forma direta a autoridade fazendária: (i) o que, afinal, o decreto está regulando? (ii) Qual desequilíbrio macroeconômico, qual surto inflacionário ou creditício imprevisto, legitimaria tamanha intervenção sem ouvir a outra parte?
O silêncio do Executivo é a prova cabal de que a única variável que se pretende “regular” é a insuficiência de caixa do Erário, revelando a mais pura e simples intenção de arrecadar.
Esta manobra é executada sob uma aura de impunidade, com um Ministro da Fazenda que age com a soberba de um soberano, talvez confiante de que o desvio de finalidade em matéria tributária foi convenientemente suprimido do rol de atos de improbidade administrativa.
Essa atitude é lamentavelmente alimentada por um vácuo criado pela própria Justiça.
A memória institucional nos remete às Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIns) 4002 e 4004, onde a mesma tese foi veiculada, contudo, a morosidade do Supremo Tribunal Federal, ao optar pela aplicação do rito do art. 12 da Lei nº 9.868/99 e abster-se de analisar o pedido liminar — que continha evidente fumaça do bom direito e manifesto perigo na demora, permitiu que os decretos passados produzissem seus efeitos financeiros até sua revogação, acarretando a perda de objeto das ações.
Criou-se, com isso, uma perversa “janela de inconstitucionalidade”, um período no qual o Executivo pode legislar ilegalmente, arrecadar e, ao final, escapar incólume do controle de constitucionalidade.
O decreto em tela é, portanto, um ato além dos poderes, pois exacerba os estritos limites da delegação legislativa.
A faculdade de alterar alíquotas não se confunde com o poder de tributar.
Quando o Executivo se vale de uma prerrogativa extrafiscal para fins puramente arrecadatórios, ele viola de forma frontal o princípio da legalidade tributária, consagrado como cláusula pétrea no art. 150, I, da Constituição.
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;”
Ele pratica uma fraude à norma constitucional, utilizando-se de um veículo normativo (decreto) para um fim (aumento de receita primária) que a Carta Magna reserva exclusivamente à lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo.
Não se trata de mera ilegalidade; trata-se de uma ruptura com o pacto federativo e com a separação de poderes.
Diante de tal usurpação, a própria Constituição Federal oferece o remédio e a salvaguarda.
O art. 49, V, estabelece a competência exclusiva do Congresso Nacional para “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
[…]
V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
Não é uma faculdade, mas um dever dos representantes do povo restaurar a ordem constitucional violada.
A sustação do Decreto 12.467/25 por meio de um decreto legislativo é a medida que se impõe para reafirmar as prerrogativas do Parlamento e para enviar uma mensagem inequívoca de que a conveniência fiscal do governo não pode se sobrepor à supremacia da Constituição.
A defesa do contribuinte, neste contexto, transcende o interesse individual e se converte na defesa do próprio Estado Democrático de Direito.